domingo, 14 de março de 2010

NÃO É GRAVURINHA NÃO!

Ele nasceu Reginaldo Acioli, mas, em Manhattan, seu nome de guerra é Reggie. Não existem muitos como ele por aí. Por 120 dólares a hora, Reginaldo/Reggie pendura Picassos, Cezánnes e Degas nas paredes mais endinheiradas da cidade. Não são poucas. “Nunca fiz propaganda. Meus clientes têm obras de arte valiosas, e moram em apartamentos de luxo. Eles não contratariam ninguém sem recomendação”, explica. Há, sim, famosos na lista, diz ele, bebericando água de côco em caixinha no seu minúsculo apartamento em Chelsea, bairro que concentra cerca de 250 galerias com o melhor e mais caro da arte contemporânea. Quem, por exemplo? “Kathleen Turner, Uma Thurman e Ethan Hawk”, responde ele, sem esconder o orgulho. Em inglês, sua profissão tem nome: “art installer”, instalador de arte. Em português? “Nem sei se existe. No Brasil, a gente morreria de fome. Lá, basta chamar o porteiro”, ri. Em Nova York, Reggie faz parte de um seletíssimo grupo de profissionais. Seu nome foi estampado numa edição especial da revista semanal Time Out. O artigo indicava os melhores “art installers” da cidade – e Reggie só tinha um competidor a lhe fazer sombra. “Nunca peço para tirar foto de clientes famosos, mas fiz uma cópia do cheque com o qual Kathleen me pagou”, confessa ele às gargalhadas. Sabe-se lá por quê, a cada seis meses a atriz muda todas as suas obras de lugar – por obras, entenda-se um Picasso, pintores americanos de primeira linha e fotografias dela tiradas pelo lendário fotógrafo Robert Mapplethorpe. Reggie decora sua própria casa com um capricho que chegou a merecer uma matéria na revista Metropolitan Home, com o título “Como viver confortavelmente nu espaço minúsculo”. Trata-se de apartamento próprio, no qual vive sozinho. Tudo é funcional e simétrico, arrumado como foto de catálogo. Impressionam o exaustor futurista, que desce do teto com a leveza de uma fina folha de metal, e a cama reclinável, que desaparece na parede durante o dia, liberando preciosos centímetros. Nas paredes do segundo instalador de arte mais bem sucedido de Manhattan, fotos, espelhos e desenhos meticulosamente emoldurados e alinhados. Há também um quadro de 1949 de um pintor americano pouco conhecido, comprado numa casa de leilões em Nova York. “Tenho o mesmo cuidado com um Degas do que com um quadro destes...” O brasileiro não trabalha para museus, só para particulares. Ainda assim, de uma só vez, instalou oito Picassos numa casa de cinco andares.“ O dono comprou os oito Picassos num mesmo leilão”, admira-se. Baixo, moreno, inteiramente careca e com os músculos cuidadosamente esculpidos em academia, Reggie trabalha sozinho. Fez um seguro de um milhão de dólares para cobrir qualquer infortúnio que lhe venha bater à porta. Até agora, a seguradora está no lucro. Nunca lhe aconteceu nada, com a possível exceção do quadro do embaixador de Luxemburgo que lhe escorregou pelas mãos e foi parar no chão com um Plec! que lhe atravessou a alma. Por sorte, o dano se restringiu à ponta da moldura. “A embaixatriz não se importou. Disse que aquele era apenas um bom quadro, não chegava a ser nada de museu”, conta aliviado. Reggie chega à casa dos clientes vestido como um gentleman – nada de jardineiras ou macacão –, e sempre entra pela entrada principal. Traz consigo sua maleta de trabalho com alicate, chave de fenda, furadeira, buchas e ganchos. A primeira providência que toma é perguntar quais são as expectativas e exigências do cliente. Dispõe então as obras no chão. Mede a parede, as molduras. Pondera. Chega à conclusões estéticas. Troca a ordem dos quadros, e os encosta, ainda no piso, abaixo de onde pretende pendurá-los. O cliente é chamado para dar seu veredicto. “Não sigo nenhuma ordem cronológica ou fases do pintor - é tudo pelo aspecto visual”, explica. Caso o cliente não o atrapalhe com muitas perguntas, chega a pendurar cerca de 10 quadros por hora. “Sugiro que os quadros fiquem relativamente baixos, logo acima do sofá ou do aparador. Mas a palavra final é do dono da casa”, resigna-se. Seu cotidiano não tem rotina. Um dia atende a até três clientes; no outro, a um só. Não faz idéia de qual o quadro mais precioso que já teve entre as mãos. Jamais entra no terreno das cifras. “Se alguém falar: ‘Cuidado que isto aí vale tanto!’, já sei que é novo-rico.” Muitos de seus clientes são yuppies; gente muito nova e endinheirada “que compra arte em galerias como se fosse evento social, e depois não têm tempo ou paciência para decidir onde pendurar os quadros”. Reggie também prospecta o filão de Hollywood. A atriz Uma Thurman era sua cliente na época em que ainda era casada com o ator Ethan Hawk. “O apartamento era maravilhoso. Agora ela está separada, vivendo no Gramercy Park”, fofoca. Ethan Hawk mudou-se provisoriamente para a cobertura do Chelsea Hotel e chamou Reggie para pendurar um quadro. “Quando olhei aquilo, vi logo ele não era mais casado. Parecia apartamento de estudante.” Clientes brasileiros? Alguns. Reggie se anima e solta dois ou três nomes. São brasileiros que can afford it”, ou seja, que podem dar conta do recado. Reggie faz questão de esclarecer que nenhum dos dois têm um Picasso em casa. Afinal, “Picasso não é coisa que dá como cogumelo depois da chuva”. Reggie nasceu no interior de Pernambuco, numa roça chamada Barreros. Diz que cresceu “no meio de nowhere, onde ninguém sabia ler. Nunca entendi por que nasci ali. Eu detestava o calor, e minha cabeça estava anos à frente daquele lugar, eu vivia lendo, lendo. Nunca aprendi a jogar bola, mas já lia aos cinco ou seis anos.” Na adolescência, foi para Recife, e de lá para Niterói. Aos 21 anos, já morava sozinho. Aos 34, mudou-se para Nova York. Fez curso de culinária, foi cozinheiro, garçom, mas aquilo não era com ele. Dez anos mais tarde, conheceu o dono de uma loja de molduras, e, para ajudá-lo, passou a pendurar quadros. “Ele indicava meu nome para clientes que precisavam de uma pessoa para carregar obras pesadas. E, de repente, descobri que eu tinha olho para aquilo”, lembra. Hoje, aos 55 anos, solteiro, Reggie é cidadão americano. Nas eleições de 2008, seu primeiro voto foi para Hillary Clinton. “Quando me naturalizei americano, foi Bill Clinton quem assinou meu certificado”, revela. De tudo que viveu, considera o ponto alto da sua vida um pôr-do-sol ao lado da musa Kathleen Turner. A atriz mora num dos espigões que levam o nome de Donald Trump. A vista do 46º andar se abre para o rio Hudson – “da sala para o norte, e do quarto, para o sul”. Numa das ocasiões de troca-troca de quadros, ela passou o dia inteiro ao lado dele, sopesando cada decisão – que obra, onde, a que altura. O dia chegava ao fim, e ela, voltada para a janela, espichou o olho em direção ao infinito. Com ar de poeta romântico, cochichou: “Reggie, o pôr-do-sol está tão bonito...” Ele, hoje, nostálgico: “E, de repente, estava eu ali na sala, tomando chá com Kathleen Turner, vendo o pôr-do-sol.” Na hora de cobrar as dez horas e pouco de trabalho, Reggie ficou sem jeito. Hesitando, murmurou: “Fica difícil cobrar porque você sabe que eu te amo...” Kathleen Turner tirou da bolsa o talão e fez um cheque com o valor acordado, aos quais somou mais 200 dólares pela confissão. (Tania Menai de NY)

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